Jurisprudência Selecionada

Doc. LEGJUR 272.2409.3650.4098

1 - TJRJ APELAÇÕES. CRIMES DE TORTURA COM RESULTADO QUALIFICADOR (LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE) E CIRCUNSTANCIADOS (CONTRA CRIANÇA), DIVERSAS VEZES, EM CONTINUIDADE DELITIVA, E DELITO DE MAUS TRATOS. RECURSO DA DEFESA POSTULANDO A ABSOLVIÇÃO SOB O FUNDAMENTO DE INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA OU POR ALEGADA COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL POR PARTE DO CORRÉU. EM SEDE SUBSIDIARIA, REQUER A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO ENTRE OS DELITOS DE MAUS TRATOS E DE TORTURA, RECONHECIMENTO DE CRIME ÚNICO DE TORTURA, REDUÇÃO DOS ÍNDICES DE AUMENTO APLICADOS NA DOSIMETRIA PENAL, RECONHECIMENTO DA ATENUANTE DA MENORIDADE RELATIVA E DIMINUIÇÃO DA FRAÇÃO RELATIVA À MAJORANTE DO CRIME DE TORTURA. APELO DO PARQUET EM BUSCA DO AUMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE PELO CRIME DO CP, art. 136, § 3º, EXASPERAÇÃO DAS PENAS-BASE EM RAZÃO DAS CONSEQUÊNCIAS DOS DELITOS, E APLICAÇÃO DA FRAÇÃO MÁXIMA DE 2/3 PELA CONTINUIDADE DELITIVA.

De início, cumpre registrar que a denúncia foi formulada em face dos pais da vítima, ou seja, a ora apelante e o pai GABRIEL, cuja condenação pelos crimes de tortura em continuidade delitiva já foi confirmada por esta E. Câmara Criminal, em feito desmembrado (processo 0033954-03.2022.8.19.0021). Feito o registro, verifica-se que, em relação a apelante, a conclusão é a mesma. A existência dos fatos delituosos narrados na denúncia encontra suporte nos elementos de prova, especialmente pelo de exame de corpo de delito (index 000120 e 000437), laudo médico (index 0000013), fotografias (index 0000074, fls. 85/90), boletim de atendimento médico emergencial (index 000133), prontuários de acompanhamento médico (index 000163) bem como no restante da prova documental e oral coligida ao feito. A hipótese em exame, em síntese, revelou que no dia 09/06/2022, o corréu GABRIEL levou a vítima, criança à época dos fatos com pouco mais de 02 meses de vida, ao Hospital Adão Pereira Nunes, alegando uma possível lesão no braço de sua filha. Durante o atendimento, a equipe médica constatou a presença de diversas lesões no pequeno corpo da vítima, lesões estas completamente desproporcionais com a alegação inicial do pai, que informara que a criança havia sofrido uma queda do sofá. Conforme se infere do Laudo Complementar de Exame de Corpo Delito de Lesão Corporal (fls. 437/439), as lesões no corpo da vítima possuíam diversos graus de regeneração, o que sedimenta o entendimento de que os ferimentos não ocorreram em apenas uma oportunidade, mas em diversas ocasiões. Apesar da defesa negar a autoria dos fatos, restou amplamente demonstrado pela prova coligida ao feito que a apelante teve responsabilidade pelas graves lesões apresentadas pela criança de poucos meses de idade, resultado de crimes de tortura praticados contra sua filha. Neste sentido, destacam-se os depoimentos prestados pela conselheira tutelar, pela assistente social e pela avó paterna. Como se vê, restou provado que: a) no curto espaço de vida da vítima (dois meses), ela passou quase a totalidade do tempo sob os cuidados dos pais, ou seja, da apelante e do corréu condenado; b) a vítima passava a maior parte do tempo com a apelante, pois o pai trabalhava durante o dia; c) a vítima apresentava múltiplas fraturas nos membros superiores e inferiores, em diferentes estágios, o que comprova que foram produzidas em datas distintas; d) exceto o dia em que os fatos vieram à tona no hospital, não há informação de sobre atendimento médico para tratar as múltiplas lesões encontradas na vítima; e) familiares sabiam que vítima era submetida a intenso sofrimento pelos pais, a ponto de a tia-avó reverberar: ¿eu falei para vocês que eles iam acabar matando essa criança¿. Tais circunstâncias são conhecidas e provadas, têm relação com os fatos e permitem, por dedução e com absoluta convicção, concluir que a apelante e o corréu condenado foram os responsáveis pelas múltiplas fraturas e ferimentos encontrados na bebê. Mesmo a partir de uma análise rigorosa e conservadora quanto ao uso da prova indireta, a convicção formada está em plena consonância com standards probatórios aceitáveis ao direito processual penal, conforme entendimento da doutrina abalizada sobre o tema. Portanto, da análise conjunta de todos esses indícios coletados ao longo da persecução penal, examinados sob a ótica do que preconiza o CPP, art. 239, conclui-se, com toda segurança, que a apelante e o corréu praticaram crimes de tortura contra a vítima em mais de uma oportunidade, tal como narrado na denúncia. Conforme consignado no voto que manteve a condenação do corréu, o crime de tortura tem o especial fim de causar sofrimento por mero prazer do mal, motivado pelos mais baixos sentimentos que movem a alma humana, como restou retratado nestes autos. Aqui a vontade de causar sofrimento físico na criança restou mais do que comprovada, tendo em vista a quantidade de lesões no corpo da vítima, sendo certo que os documentos acostados nos index 13, 44 e 74 apontaram traumatismos ósseos em diversos estágios, fraturas no crânio, dentre outras moléstias, totalizando cerca de 32 lesões corporais, além da evidente deformação no braço direito da criança. Como se verifica, são fatos extremamente graves, demonstradores de perversão e covardia, onde grande dose de maldade restou explicitada para o fim de provocar intenso sofrimento físico. A coação alegada somente em sede de apelação não merece maiores considerações, pois não encontra amparo em nenhuma evidência dos autos. Já o crime de maus tratos não pode subsistir. No caso dos autos, nenhuma dúvida quanto ao fato de que, por força do comportamento consciente e intencional da apelante e do corréu, a saúde vítima foi exposta a perigo em razão da privação de alimentação, fazendo com que apresentasse baixo peso para a idade, bem como não tenha recebido os cuidados indispensáveis, resultando em extensa assadura, descrita no exame de corpo de delito acostado aos autos. Entretanto, tais privações compuseram, precisamente, os componentes do ¿intenso sofrimento físico¿ dos crimes de tortura, praticados em continuidade e no mesmo contexto fático. Deve, por isso mesmo, ser considerado crime-meio para a execução dos crimes de tortura. Assim, nessa parte, a irresignação defensiva deve ser acolhida, impondo-se a absolvição da apelante, quanto à imputação do crime de maus tratos. No plano da dosimetria, o pedido do MP para exasperar a pena-base em razão das consequências do crime não merece acolhida. Para tanto O Parquet sustenta que, ¿tendo em vista sua pouca idade, as consequências imediatas implicaram o necessário acolhimento institucional da criança, como única forma de impedir a perpetuação das agressões e da continuada negligência de que fora vítima¿. Contudo, não é verdade que a pouca idade da vítima obriga o seu acolhimento institucional. A criança conta com outros familiares, inclusive a avó paterna, como declarou em Juízo, já requereu a guarda da vítima. Logo, o fundamento invocado pelo MP não justifica o aumento da pena-base. Deve ser afastada a agravante do art. 61, II, ¿e¿, do CP, posto que as relações estabelecidas entre a apelante e a vítima já fazem parte do tipo penal da Lei 9455/97, art. 1º, II, configurando bis in idem a aplicação da citada agravante. Tendo em vista que a apelante, nascida no dia 10/05/2002 (conforme qualificação constante da denúncia) possuía vinte anos completos no término das torturas narradas em denúncia, assiste razão à defesa quanto ao reconhecimento da atenuante. No entanto, a pena não poderá ser fixada abaixo do mínimo legal, por força do enunciado da Súmula 231/STJ. Considerando a condição da vítima (criança), incide a causa especial de aumento prevista no, I do § 4º do art. 1º da Lei de Tortura. Porém, a maior fração adotada pelo édito condenatório (1/3) deve ser alterada, porquanto o seu afastamento do mínimo legal não foi justificado. Assim, de rigor a aplicação da menor fração, de 1/6. Em relação à continuidade delitiva, o Parquet pede a incidência da fração máxima. Conforme já ressaltado, a vítima foi submetida, durante seus primeiros meses de vida, a uma considerável quantidade de sofrimentos físicos, haja vista que apresentava múltiplas fraturas em diversos locais de sua pequena estrutura corporal (rádio, úmero, tíbia, fêmures, arcos costais, clavícula) e múltiplas fraturas de calota craniana, além de baixo peso e genitália com significativa lesão hiperemiada e descamativa, sendo importante destacar que a perícia constatou, através de exames radiológicos, que tais lesões apresentavam vários estágios de consolidação, o que permite concluir que foram elas produzidas em datas diferentes, durante os seus primeiros meses de vida. Dessa forma, embora não se possa precisar a quantidade de infrações praticadas, pela análise da prova pericial é possível inferir que a vítima foi submetida, de fato, a sofrimentos físicos praticados em mais de sete ocasiões distintas, de modo que deve ser aplicado o aumento da pena na fração máxima de 2/3 pela continuidade delitiva. Considerando a ausência de circunstância judicial desabonadora e a fixação da pena final inferior a oito anos, o regime inicial semiaberto mostra-se adequado e proporcional na espécie, nos termos da alínea «b do § 2º do CP, art. 33. RECURSOS CONHECIDOS E PARCIALMENTE PROVIDOS, na forma do voto do Relator.... ()

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