Jurisprudência Selecionada

Doc. LEGJUR 979.5183.5594.3011

1 - TJRJ APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE TORTURA CASTIGO (KAREN) E TORTURA POR OMISSÃO E FALSIDADE IDEOLÓGICA EM CONCURSO MATERIAL (ADRIANA). APELO DEFENSIVO PUGNANDO PELA ABSOLVIÇÃO POR FRAGILIDADE PROBATÓRIA. EM SEDE SUBSIDIÁRIA, REQUER A FIXAÇÃO DA PENA BASE NO PATAMAR MÍNIMO LEGAL, O ABRANDAMENTO DO REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA, A ABSOLVIÇÃO PELO CRIME DO CODIGO PENAL, art. 307 ALEGANDO NÃO TER SIDO CARACTERIZADO O DELITO (ADRIANA). PLEITEIA A GRATUIDADE DE JUSTIÇA (ADRIANA).

Extrai-se dos autos que o Conselheiro Tutelar Robson Oliveira da Silva, no dia 29/01/2023, recebeu uma denúncia informando que uma criança com pouca idade foi espancada pela mãe e sua namorada e ainda foi abandonada na rua e estava pedindo socorro e as agressoras estavam no interior do Bar do Semir. Em razão do teor do narrado, o profissional se encaminhou até o local indicado onde se deparou com uma menina de pouca idade sozinha, vestindo apenas calcinha e com chaves na mão embaixo de forte chuva e pedindo socorro. A criança apresentava diversas feridas com sangue e hematomas pelo corpo, tinha dois «galos na cabeça, não tinha os dentes da frente, os lábios e as costas estavam com hematomas roxo, os joelhos, sangrando. Diante do estado grave que a infante estava, Robson imediatamente acionou a SAMU que rapidamente chegou no local, realizou os primeiros socorros e encaminhou a criança para o Hospital Dr. Celso Martins. Posteriormente, a criança foi identificada como A. S. de cinco anos de idade, e a menina disse que a namorada de sua mãe, de nome Karen, tinha lhe batido muito e ainda a ameaçou tirar sua vida com uma faca. A infante afirmou que sua mãe, Adriana, via as agressões e não a defendia. O Conselheiro Tutelar registrou que a criança chorava e demonstrava pânico todas as vezes em que mencionava os nomes de sua mãe e de Karen. Em seguida, Robson acionou os policiais militares para o local e apontou onde estavam as agressoras mencionadas pela criança. Os policiais militares, a partir das informações do Conselheiro, foram até o bar mencionado e solicitaram que as duas mulheres se identificassem. Conforme as declarações da policial militar Debora Monteiro Rodrigues, a namorada da genitora de A. se identificou como Karen Helen Francisca dos Santos; a mãe da criança se identificou como Julia, mentindo sobre sua identidade. Porém, os policiais perceberam a mentira da mãe de A. pois Karen a chamou de Adriana. Ao ser questionada sobre os fatos, Adriana mentiu em relação ao seu endereço residencial, afirmou que não tinha uma terceira filha, apenas as duas que estavam acompanhadas da mesma, que desconhecia a criança chamada A. e negou ter agredido qualquer criança. Configurado o estado flagrancial, Karen e Adriana foram encaminhadas à sede policial, onde foram adotadas as providências cabíveis. Em audiência de custódia, em 31/01/2023, a prisão em flagrante foi convertida em preventiva. No boletim de atendimento médico da criança A. consta descrito na anamnese «paciente vítima de múltiplas agressões encontrada pela equipe do SAMU na rua, paciente de longa data". A vítima foi encaminhada para o setor de ortopedia: «p/ ortopedia: criança vítima de espancamento apresentando múltiplas equimoses em MMII e MMSS, face, tórax e abdome, com escoriações em joelhos, com queixa de dor em cotovelo esquerdo e ambos joelhos, sem limitação funcional dos seguimentos. No resultado do laudo de exame de corpo de delito realizado em A. consta na parte Histórico: «menor trazida pela prima, Carina de Oliveira Pereira, alega a menor que foi agredida por uma pessoa que chama de Karen, alega que foi agredida com borracha, com chinelo, com vassoura e que ela bateu com sua cabeça na parede;". Na parte descrição, constata-se que «ao exame em 30/1/2023 apresenta tumefação violácea na região frontal do lado direito com escoriação na superfície; tumefação violácea em região frontal do lado esquerdo ; doze lesões do tipo tumefações violáceas distribuídas pela face, lábios e supercilio, com a maior sendo lesão ovalada com pequenas escoriações na periferia compatível com mordida humana; três lesões do tipo equimose violácea distribuídas pelo pescoço; seis lesões do tipo equimose violácea no membro superior direito e uma tumefação violácea, no terço médio do braço direito; três tumefações Violáceas no braço esquerdo; quatro lesões em região torácico abdominal anterior avermelhadas que deixam ver marcas compatíveis com sola de calçado; o dorso da periciada está totalmente com coloração violácea e com áreas lineares avermelhadas não sendo possível sequer saber o número de lesões pela superposição das marcas consigo individualizar pelo menos quinze lesões diferentes, mas a superposição de marcas deixa claro que foram mais golpes do que consigo individualizar ao exame; duas equimoses violáceas na nádega direita e uma tumefação violácea no terço médio da coxa direita;". Na parte Discussão, registrou-se: «Consegui individualizar quarenta e nove lesões, sendo certo que algumas sobrepostas não foi possível contar; Meio cruel causa desnecessariamente, maior sofrimento a vítima. O agente mostra-se insensível ao sofrimento da vítima, mais do que ferir a vítima, busca o agente impor sofrimento. Na resposta às quesitações, constatou-se que houve vestígios de lesão corporal com possível nexo causal e temporal ao evento alegado pelo perito produzido por ação contundente, mordida humana e meio cruel. Em outras considerações objetivas, constou «Não é possível mensurar ou afirmar as sequelas psicológicas causadas na vítima no presente exame. Após o tempo de internação hospitalar, as crianças A. S. A. C. S. e A. S. foram entregues à responsável Cristiane de Oliveira Soares, tia-avó da vítima, conforme termo de entrega e termo de responsabilidade. Integram o caderno probatório registro de ocorrência 159-00124/2023 (e-doc. 12), termos de declaração (e-docs. 16, 20, 22) auto de prisão em flagrante (e-doc. 18), boletim de atendimento médico (e-doc. 32), fotografia da vítima (e-doc. 37); relatório do Conselho Tutelar (e-doc. 123); termo de entrega de crianças à responsável e termo de responsabilidade (e-docs. 124/125), laudo de exame de corpo de delito de lesão corporal (e-docs. 144/146), relatório psicológico de Karen Helen Francisca dos Santos, Adriana Soares Lessa e a infante A. S. (e-docs. 223/234), e a prova oral, colhida em audiência, sob o crivo do contraditório. Em interrogatório no juízo, as acusadas optaram por permanecer em silêncio. Diante da robustez do caderno probatório, restou amplamente demonstrado pela prova coligida ao feito que as apelantes foram responsáveis pelos fatos narrados na denúncia, resultado de crime de tortura castigo (Karen) e tortura por omissão, além de falsidade ideológica (Adriana) praticado contra criança, consistente em submeter a menor de apenas 05 anos à época dos fatos a intenso sofrimento físico e mental causados por conta das agressões físicas, além de danos psicológicos oriundos destes atos. O estudo de caso produzido pela equipe técnica concluiu que a violência física era realizada por Karen contra toda a família, ressaltando que os atos violentos iam além dos limites da correção, de forma que a criança A. era constantemente agredida por aquela com a intenção de causar-lhe intensa dor e sofrimento, não sendo o dia 29/01/2023 um episódio de tortura isolado. Vale a pena transcrever parte da oitiva da criança pela equipe técnica: «Quando perguntada sobre a madrasta, A. imediatamente apresenta um semblante retraído e franze as sobrancelhas. A vítima, então, passa a narrar sua tortura, relatando que era agredida com chinelo, cabo de vassoura, faca, «aquele negócio que dói [sic], referindo-se a algum objeto que não sabia nomear, bem como teve sua cabeça batida contra a parede e até mesmo foi atirada escada abaixo. A. relembra os filhos de Karen e conta que o pequeno foi levado, chorando muito, para morar longe (após a prisão da mãe). Por fim, comenta que gosta muito de uma pessoa chamada «Vó Eliete [sic] e que tem vontade de ficar com ela. Ao citar essa pessoa, Ariana esboça um sorriso. Em depoimento especial, a vítima disse «Que tem 5 anos; que Karen lhe batia; que Karen tem um filho chamado Nicolas que tem um pé torto; que Karen xingava a depoente; que Karen disse que ia matá-la de faca e de chinelo; que Karen batia na mãe da vítima; que batia na mãe perto dela; que Karen bateu nas costas e na pepeca; que Karen bateu um monte de vezes; que é horrível; que a mãe chegou a ver Karen batendo na depoente; que só a Karen batia na depoente. A tia-avó da vítima Cristiane Soares, em juízo, disse que a criança era constantemente agredida por sua madrasta Karen. Apesar de não ter presenciado as torturas físicas por não frequentar a residência das acusadas, ouviu inúmeros relatos da criança A. sobre os castigos físicos que K lhe empregava, como jogá-la contra a parede, agressão com cinto, desferimento de socos, entre outros. Os irmãos da infante também contaram à Cristiane sobre os castigos aos quais a criança era submetida no interior do lar, tendo eles ressaltado que apenas A. era agredida por Karen. Assim que Cristiane acolheu A. notou que esta possuía lesões aparentes, um «galo na testa e hematomas no rosto. Portanto, em razão dos elementos integrantes do caderno probatório, a prova é abundante em relação à prática dos crimes de tortura, sendo correto o juízo de censura. Importante frisar que no laudo de exame de corpo de delito constatou-se a existência de lesões mais recentes e outras antigas, além disto a prova testemunhal indicou que a infante era vítima de constantes sofrimentos físicos, sendo incontroversa a omissão reiterada da apelante Adriana. Conforme dispõe o CP, art. 13, § 2º: «A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;". In casu, a hipótese nos autos se aplica a este dispositivo legal, uma vez que Adriana é a mãe da vítima A. e, por isto, possui o dever de guarda, conforme dispõe o ECA, art. 22, tendo entre tais deveres o cuidado, a proteção, a orientação, entre outros. A acusada Adriana exercia também a guarda de fato da criança, ausente qualquer decisão judicial que a tenha afastado ou destituído o poder familiar. Desta forma, a sua omissão foi penalmente relevante, uma vez que tinha o dever de agir e não o fez. Também em relação ao crime de falsidade ideológica, os policiais militares, em ambas as sedes, narraram que as acusadas foram encontradas por eles bebendo em um bar e que, após informarem-nas sobre o encontro da criança A. extremamente machucada, aquelas, sem demonstrar qualquer preocupação com a criança, negaram conhecê-la, mas a ré Adriana atribuiu a si mesma nome falso para não ser identificada, tentando se eximir de sua responsabilidade. Desta forma, correto o juízo de censura em relação ao delito de falsidade ideológica para Adriana. Por sua vez, o crime de tortura castigo em relação à acusada Karen restou fartamente comprovado nos autos, diante da prova adunada. Vale dizer que ainda que fosse uma única agressão para causar intenso sofrimento como meio de castigar ou medida de caráter preventivo à vítima, já seria o bastante para configurar o delito de tortura castigo. Restou plenamente evidenciado que as agressões foram provocadas com o mero intuito de causar sofrimento, como demonstrado no feito, o que confere certeza de inegável sofrimento físico e mental ao qual foi a vítima submetida, configurando o crime de tortura. Dessa forma, não existem dúvidas a respeito do juízo de reprovabilidade da conduta pela qual a apelante foi condenada, tendo em vista que atuou em plena inobservância do ordenamento jurídico, quando lhe era possível agir em conformidade com o mesmo. Assim, afasta-se a pretensão defensiva absolutória. Em relação ao processo dosimétrico, este merece ajuste. Em análise à FAC das apelantes, verifica-se que ambas são primárias. Em relação à apelante Karen, verifica-se, contudo, conforme já mencionado acima, que foram vários os sofrimentos causados na criança, além de não se poder mensurar o dano psicológico, a extrapolar o tipo penal de tortura. As circunstâncias do delito também foram extremamente negativas, uma vez que o crime foi praticado na residência familiar, na presença de outras crianças de tenra idade, irmãos da vítima, que presenciaram os fatos. Também conforme o relatório psicológico, a acusada Karen revela personalidade fria e insensível ao sofrimento da vítima: «Karen foi entrevistada por videochamada. Presa, ela demonstrou indiferença ao fato que originou o processo, não demonstrando qualquer emoção ou arrependimento. Ao contrário disso, alega que nunca bateu em A. e que não sabe o motivo de estar presa. Presentes três circunstâncias judiciais negativas, o incremento utilizado pelo juízo de piso na primeira fase foi bem fundamentado e tem respaldo nas provas e peculiaridades do caso em tela, não merecendo reparo, de forma que a reprimenda deve permanecer no quantum de 04 anos de reclusão, e assim se mantém na segunda fase diante da ausência de circunstâncias atenuantes e agravantes. Na terceira fase, reconhece-se a causa de aumento de pena prevista no art. 1º, §4º, II da Lei 9.455/97, uma vez que a vítima é criança, e apresentava tenra idade aos fatos, cinco anos, a indicar sua extrema vulnerabilidade, o que a torna incapaz de se defender das agressões praticadas por uma pessoa adulta. Contudo, tendo em vista a existência de apenas uma causa especial de aumento, deve a pena ser majorada na fração de 1/6, a totalizar 04 anos e 8 meses de reclusão. Diante das circunstâncias judiciais negativas, deve ser mantido o regime fechado, nos termos do art. 33, §3º do CP. Por sua vez, em relação à apelante Adriana, também elevadas as circunstâncias e consequências do delito, conforme as ponderações mencionadas anteriormente. Por sua vez, a culpabilidade extrapola o tipo penal, pois Adriana tinha pleno conhecimento da conduta violenta de sua companheira praticada contra sua filha e se omitiu várias vezes. Presentes três circunstâncias judiciais negativas, o incremento utilizado pelo juízo de piso na primeira fase foi bem fundamentado e tem respaldo nas provas e peculiaridades do caso em tela, não merecendo reparo, de forma que a reprimenda deve permanecer no quantum de 02 anos de detenção, que assim se mantém na segunda fase diante da ausência de circunstâncias atenuantes e agravantes. Na terceira fase, reconhece-se a causa de aumento de pena prevista no art. 1º, §4º, II da Lei 9.455/97, uma vez que a vítima é criança, e apresentava tenra idade aos fatos, cinco anos, a indicar sua extrema vulnerabilidade, o que a torna incapaz de se defender das agressões praticadas por uma pessoa adulta. Contudo, tendo em vista a existência de apenas uma causa especial de aumento, deve a pena ser majorada na fração de 1/6, (um sexto), a totalizar 02 anos e 04 meses de detenção. Em relação ao crime de falsidade ideológica, correto o incremento na primeira fase em 1/6, diante da culpabilidade da acusada, a totalizar o quantum de 3 meses e 15 dias de detenção, que assim se estabiliza diante da ausência de moduladores nas demais fases. Considerando o concurso material de crimes, com a soma das penas, chega-se ao total de 02 anos, 07 meses e 15 dias de detenção, que, contudo, deve ser cumprimento no regime semiaberto, diante das circunstâncias judiciais negativas, nos termos do art. 33, §3º do CP. O pleito referente à gratuidade de justiça deve ser endereçado ao Juízo da Execução Penal, nos exatos termos da Súmula 74, deste E. TJERJ. Sentença a merecer reparo. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.... ()

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