Jurisprudência em Destaque

STJ. 2ª Seção. Consumidor. Embargos de divergência. Inversão do ônus da prova. Regra de instrução e não de julgamento. Divergência configurada. Considerações da Minª. Maria Isabel Gallotti sobre o tema. Precedentes do STJ. CDC, arts. 6º, VIII, 12, 13 e 18. CPC, art. 333.

Postado por Emilio Sabatovski em 02/07/2012
«... Trata-se de embargos de divergência opostos por Spaipa S/A Indústria Brasileira de Bebidas contra acórdão da 3ª Turma deste Tribunal (fls. 860-905), que considerou a inversão do ônus da prova de que trata o art. 6º, inc. VIII, da Lei 8.078/90 (CDC) como regra de julgamento, que, portanto, pode ser estabelecida no momento em que o juiz proferir a sentença ou até mesmo pelo Tribunal ao apreciar a apelação, como ocorreu no caso em exame.

Afirma a embargante que o acórdão embargado encontra-se em divergência com o entendimento da 4ª Turma, que, nos julgamentos dos RESPs 591.110/BA, 662.608/SP e 881.651/BA, concluiu que a referida norma legal inseriu regra de procedimento, que, como tal, deve ser determinada pelo juiz durante a instrução do feito e mediante decisão que examine fundamentadamente os requisitos exigidos em lei, de forma a propiciar a produção da prova à parte a quem dirigida a ordem judicial e que irá suportar as consequências processuais de sua eventual não produção.

O relator, Ministro João Otávio de Noronha, conheceu e deu provimento aos embargos, «a fim de que, mantida a inversão do ônus da prova pelo Tribunal a quo, o Juízo de primeiro grau reabra a oportunidade para indicação de provas e realize a fase de instrução do processo», com base no recente julgamento pela 2ª Seção do RESP 802.832/MG.

O Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em voto-vista, considerou não configurada a divergência entre os acórdãos embargado e paradigma, ao entendimento de que a discussão dos autos se refere à responsabilidade pelo fato do produto prevista no art. 12 do CDC, dispositivo que indica por quem e de que forma os fatos devem ser comprovados, motivo pelo qual não tem pertinência a discussão sobre o momento adequado para se estabelecer a inversão do ônus da prova, debate que tem cabimento somente nas hipóteses em que a inversão decorre de determinação judicial, na forma do art. 6º, VIII, do referido código.

Observou, ainda, ser irrelevante a identificação do fabricante do produto defeituoso para o julgamento do presente recurso, primeiro, em razão da finalidade dos embargos de divergência de uniformizar a jurisprudência no âmbito do Tribunal e, depois, porque a providência demandaria reexame do conjunto fático-probatório dos autos, provimento vedado pela Súmula 7/STJ. Diante disso, não conheceu dos embargos de divergência, no que foi acompanhado pelos Ministros Sidnei Beneti e Nancy Andrighi.

Pedi vista para melhor examinar a questão, trazendo agora o meu voto, a fim de prosseguir o julgamento.

Adiro integralmente aos fundamentos do voto do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em relação à precisa distinção das espécies de inversão do ônus da prova contidas no CDC, quando decorrente da lei («ope legis») ou por determinação judicial («ope judicis») , conforme exposto de maneira brilhante no voto condutor do acórdão proferido no RESP 802.832/MG, cujo julgamento foi afetado à 2ª Seção e do qual extraio as seguintes passagens:


Inicialmente, deve-se estabelecer uma diferenciação entre duas modalidades de inversão do ônus da prova previstas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), podendo ela decorrer da lei (ope legis) ou de determinação judicial (ope judicis ).


Na primeira hipótese, a própria lei – atenta às peculiaridades de determinada relação jurídica – excepciona previamente a regra geral de distribuição do ônus da prova. Constituem exemplos dessa situação as hipóteses previstas pelos enunciados normativos dos arts. 12, § 3º, II, e 14, § 3º, I, do CDC, atribuindo ao fornecedor o ônus de comprovar, na responsabilidade civil por acidentes de consumo - fato do produto (art. 12) ou fato do serviço (art. 14), a inexistência do defeito, encargo que, segundo a regra geral do art. 333, I, do CPC, seria do consumidor demandante.


Nessas duas hipóteses, não se coloca a questão de estabelecer qual o momento adequado para a inversão do ônus da prova, pois a inversão foi feita pelo próprio legislador («ope legis») e, naturalmente, as partes, antes mesmo da formação da relação jurídico-processual, já devem conhecer o ônus probatório que lhes foi atribuído por lei.


A segunda hipótese prevista pelo CDC, que é a discutida no presente processo, mostra-se mais tormentosa, pois a inversão resulta da avaliação casuística do magistrado, que a poderá determinar uma vez verificados os requisitos legalmente previstos, como a «verossimilhança». e a «hipossuficiência». a que refere o enunciado normativo do art. 6º, VIII, do CDC.


Nestes casos, de que é exemplo marcante a situação retratada nos autos, relativo à responsabilidade por vício no produto (art. 18 do CDC), surge a questão de se estabelecer qual o momento processual mais adequado para que o juiz, verificando a presença dos pressupostos legais, determine a inversão da distribuição do ônus probatório.


A este respeito, embora diante da responsabilidade pelo fato do produto – em que a inversão do ônus da prova, ao meu sentir, advém automaticamente da própria lei (ope legis) –, esta Terceira Turma, no REsp 422.778/SP, leading case do atual entendimento, entendeu possível a utilização, no momento do julgamento, do art. 6º, VIII, do CDC (ope judicis ):


Recurso especial. Civil e processual civil. Responsabilidade civil. Indenização por danos materiais e compensação por danos morais. Causa de pedir. Cegueira causada por tampa de refrigerante quando da abertura da garrafa. Procedente. Obrigação subjetiva de indenizar. Súmula 7/STJ. Prova de fato negativo. Superação. Possibilidade de prova de afirmativa ou fato contrário. inversão do ônus da prova em favor do consumidor. Regra de julgamento. Doutrina e jurisprudência. Arts. 159 do CC/1916, 333, I, do CPC e 6º, VIII, do CDC.


(...)


- Conforme posicionamento dominante da doutrina e da jurisprudência, a inversão do ônus da prova, prevista no inc. VIII, do art. 6º do CDC é regra de julgamento. Vencidos os Ministros Castro Filho e Humberto Gomes de Barros, que entenderam que a inversão do ônus da prova deve ocorrer no momento da dilação probatória. Recurso especial não conhecido.


(REsp 422778/SP, Rel. Ministro CASTRO FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2007, DJ 27/08/2007 p. 220)


Considerou-se que o ônus da prova, por ser regra de julgamento, poderia – e deveria – ter a sua inversão determinada na sentença, único momento processual em que a distribuição do encargo probatório possuiria sentido e relevância.


Não se desconhece que as normas relativas ao ônus da prova constituem, também, regra de julgamento para se evitar o non liquet do Direito Romano, pois as consequências da não-comprovação de fato ou circunstância relevante para o julgamento da causa devem, quando da decisão, ser atribuídas à parte a quem incumbia o ônus da sua prova.


Nada obstante, entendo ser este somente um dos aspectos relevantes da distribuição do ônus da prova. Trata-se do aspecto objetivo, dirigido ao juiz.


Não se pode olvidar, porém, que o aspecto subjetivo da distribuição do ônus da prova mostra-se igualmente relevante.


Pelo aspecto subjetivo ou – na doutrina de Barbosa Moreira (Temas de direito processual civil: segunda série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 74) – formal do ônus da prova, ele se apresenta, conforme destacado por Fredier Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (Curso de direito processual civil, vol. 2, 4ª Edição. Editora Juspodivm. Salvador: 2009, p. 74), como uma «regra de conduta para as partes». ou ainda, nos dizeres de Daniel Mitidiero (Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: 2009, p. 125), como uma «norma de instrução».


A distribuição do ônus da prova apresenta extrema relevância de ordem prática, norteando, como uma verdadeira bússola, o comportamento processual das partes. Naturalmente, participará da instrução probatória com maior vigor, intensidade e interesse a parte sobre a qual recai o encargo probatório de determinado fato controvertido no processo.


Exatamente isso pode ser verificado no caso dos autos, pois o fornecedor do produto considerado viciado pelo recorrente desistiu da produção das provas testemunhal e pericial que havia requerido, comportamento que certamente não adotaria se soubesse – antes da sentença – que sobre si recairia o ônus probatório.


Influindo a distribuição do encargo probatório decisivamente na conduta processual das partes, devem elas possuir a exata ciência do ônus atribuído a cada uma delas para que possam, com vigor e intensidade, produzir oportunamente as provas que entenderem necessárias.


Do contrário, permitida a distribuição, ou a inversão, do ônus probatório na sentença e inexistindo, com isto, a necessária certeza processual, haverá o risco do julgamento ser proferido sob uma deficiente e desinteressada instrução probatória, na qual ambas as partes tenham atuado com base na confiança de que sobre elas não recairá o encargo da prova de determinado fato.


De outro lado, o argumento de que a simples previsão legal da inversão ope judicis já seria suficiente para alertar as partes acerca da possibilidade da sua utilização pelo juiz quando da prolação da sentença desconsidera a distinção inicialmente referida, entre inversão ope judicis e ope legis.


Expressão dessa tendência de se conferir cada vez mais relevo ao aspecto subjetivo do ônus da prova é o Projeto de Código de Processo Civil, elaborado pela Comissão presidida pelo eminente Min. Luiz Fux (Projeto 166, de 2010, em tramitação no Senado Federal), cujo enunciado normativo do art. 262, §1º, dispõe que «a dinamização do ônus da prova será sempre seguida de oportunidade para que a parte onerada possa desempenhar adequadamente seu encargo».


Assim, a inversão ope judicis do ônus da prova deve ocorrer preferencialmente no despacho saneador, ocasião em que o juiz «decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento». (art. 331, §§ 2º e 3º, do CPC).


Desse modo, confere-se maior certeza às partes acerca dos seus encargos processuais, evitando-se a insegurança.

Considero irretocáveis esses ensinamentos, motivo pelo qual acompanhei o referido voto no julgamento concluído em 13.4.2011. Divirjo, todavia, quanto à solução dada ao caso presente, porque, aqui, não foi comprovado que a ré fabricou (forneceu) o produto defeituoso, de modo a ensejar a incidência das regras de ônus probatório estabelecidas no art. 12 do CDC. Estas têm por pressuposto lógico a identificação do responsável pelo produto defeituoso, encargo do autor da ação, o que não ocorreu no processo em exame. A sentença julgou improcedente o pedido exatamente porque não comprovado o nexo causal, vale dizer, o autor não comprovou que a fabricante do produto causador do dano foi a antecessora da ré. Não se cogitou de inversão do ônus da prova quanto à identidade do fornecedor na fase de instrução, providência decidida apenas durante o julgamento da apelação. O autor não comprovou que a ré fabricou o produto (nexo causal). A ré teve contra si invertido o ônus de provar que não fabricou o produto na fase de julgamento de apelação, tendo suprimida a chance de fazer a prova negativa que lhe foi atribuída em segundo grau.

Com efeito, as hipóteses descritas nos incisos, I, II e III, do § 3º, do referido dispositivo legal, tratam de excludentes de responsabilização, sendo certo que somente é possível atribuir-se a incumbência de comprovar a não colocação de produto do mercado, que ele não apresenta defeitos ou mesmo a culpa exclusiva do consumidor, a quem detém a condição de fabricante, produtor, construtor ou importador do bem ou serviço, cujo alegado defeito provocou danos ao seu adquirente. A comprovação de quem é o fabricante do produto defeituoso compete ao consumidor. Este fica dispensado de comprovar apenas a culpa do fabricante pelo defeito que causou o evento danoso, mas não que o produto foi fabricado pelo fornecedor que indica na inicial.

Nesse sentido, posiciona-se Rizzatto Nunes ao comentar o art. 12 do CDC:


A primeira observação diz respeito aos sujeitos da oração. A norma diz «o fabricante, o produtor, construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador» abrindo mão de utilizar o termo geral: «fornecedor».


Explica-se. Fornecedor é o gênero daqueles que desenvolvem atividades no mercado de consumo, conforme definido no art. 3º. Assim, toda vez que o CDC se refere a «fornecedor» está envolvendo todos os participantes que desenvolvem atividades, sem qualquer distinção. É o que ocorre, por exemplo, na responsabilidade pelo vício (que examinaremos na próxima seção). No art. 18 o CDC põe com sujeito «os fornecedores», sem distinção. Como se verá, quando isso ocorre, cabe ao consumidor a escolha daquele que deverá resolver seu produto (v.g. o consumidor vai ao comerciante-lojista pedir a troca do produto).


Já na responsabilidade por defeito, a regra é a especificação do agente. Com isso, a sujeição passiva se altera, limitando a escolha do consumidor. Na hipótese de acidente de consumo com produto, a ação do consumidor tem de se dirigir ao responsável pelo defeito: fabricante, produtor ou construtor e, em caso de produto importado, o importador.


(Comentário do Código de Defesa do Consumidor, p. 251, 6ª ed., 2011, Saraiva).

Especificamente em relação às excludentes de responsabilização (CDC, art. 12, § 3º), acrescenta o citado autor:


Como a sistemática adotada é a da responsabilidade objetiva, demonstrado pelo consumidor o dano, o nexo de causalidade entre o dano e o produto com a indicação do responsável, pode este, caso queira - e possa -, desconstituir sua obrigação de indenizar nas hipóteses previstas no § 3º do art. 12.


Contudo, antes de ingressarmos nessa avaliação, necessário se faz que comentemos um aspecto relevante da prova do nexo de causalidade. A pergunta que se faz é: o consumidor tem a obrigação de provar o dano, o nexo de causalidade existente entre o dano e o produto, e apontar o responsável pela elaboração deste?


Já tivemos oportunidade de comentar a norma que permite a inversão do ônus da prova em favor do consumidor (inciso VIII do art. 6º). Trata-se de norma processual que se espalha por todas as situações em que, eventualmente, o consumidor tenha de produzir alguma prova. Assim aqui também, na prova do dano e do nexo de causalidade.


Voltando à questão: é ao consumidor, naturalmente, a quem incumbe a prova do dano, do nexo de causalidade entre o dano e o produto, com indicação do responsável pela fabricação do produto. Todavia, o ônus de produzir essa prova pode ser invertido nas hipóteses do inciso VIII do art. 6º.


(...)


Concluída essa fase pelo consumidor, da prova do dano, do nexo de causalidade entre o dano sofrido e o produto, com a indicação do responsável pelo produto, deve este último pura e simplesmente pagar o valor da indenização que for apurada, sem praticamente possibilidade de defesa. Suas únicas alternativas de contestação são as previstas no § 3º do art. 12


(Obra citada, p. 259-260).

Ora, se o consumidor não demonstrou que o réu da ação fabricou o produto defeituoso e, portanto, é o responsável pelo dano que alegou ter suportado, não têm aplicação as regras de apresentação de provas previstas no art. 12, § 3º, do CDC (inversão do ônus da prova «ope legis») . Caberia a inversão do ônus de comprovar a identidade do fabricante do produto defeituoso (nexo causal entre o dano e a ação do réu de fabricar o produto), mas esta inversão tem por fundamento o art. 6º, inciso VIII, do CDC (fundamento adotado pelo acórdão da apelação e pelo acórdão embargado), e deveria ter sido determinada pelo juiz, na fase de instrução, ou ao menos seguir-se da reabertura da instrução, a fim de dar oportunidade ao réu de demonstrar que não produziu, fabricou, construiu ou importou a mercadoria reputada defeituosa.

Ressalto que o Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no âmbito doutrinário, ratifica esse posicionamento ao discorrer sobre a imputação de responsabilidade no CDC:


«O ordenamento jurídico atribui a determinadas pessoas o dever de reparar os danos causados a outras por certos fatos que a elas se vinculam. A imputabilidade consiste no nexo de atribuição (ou de imputação) que se deve estabelecer entre certo fato e determinado agente, para que ele possa ser considerado responsável, constituindo, assim, um pressuposto de extrema relevância na responsabilidade civil subjetiva ou objetiva.


Na responsabilidade civil subjetiva, a imputação guarda sempre referência a um determinado delito, atribuindo-se a obrigação de indenizar uma pessoa por ter, sob um ângulo objetivo, violado determinados deveres de cuidado fixados pela ordem jurídica (ilicitude) e por ter, sob um ângulo subjetivo, agido voluntariamente ou de forma diversa da que era devida nas circunstâncias (culpa lato sensu). Na responsabilidade civil objetiva, o elemento culpa é dispensado do suporte fático, derivando a formulação do nexo de imputação de critérios puramente objetivos.


Na responsabilidade civil por acidentes de consumo, como modalidade de responsabilidade objetiva, o suporte fático do fato do consumo, em si, é composto apenas pelos danos causados por um produto ou serviço defeituoso. A rigor, a atribuição do dever de indenizar esses danos deveria recair sobre as pessoas físicas ou jurídicas que mantivessem vinculação direta com a defeituosidade desse produto ou serviço causador do dano. A imputação deveria ficar restrita aos responsáveis pela criação desses produtos ou serviços e por sua colaboração no mercado de consumo, atingindo, assim, somente o fabricante, o construtor, o produtor ou o prestador de serviços.


Frequentemente, porém, para viabilizar uma proteção mais efetiva à vítima de acidentes de consumo, amplia-se o nexo de imputação para abranger outras pessoas, que, embora não tendo relação direta com o produto ou o serviço no momento da sua criação, instante provável do surgimento do defeito, participam ativamente da sua circulação no mercado de consumo até chegar às mãos do consumidor ou usuário, como ocorre com o importador, o distribuidor, o comerciante. Estabelece-se, assim, na responsabilidade por acidentes de consumo, uma ampliação do nexo de imputação para abranger pessoas que, no sistema tradicional, não seriam atingidas.


(...)


O comerciante atacadista ou varejista aparece como responsável aparente quando vender produtos anôminos ou produtos perecíveis em mau estado de conservação. Figura como responsável aparente, sendo somente responsabilizado subsidiariamente, quando não identificar o fabricante ou o importador do produto vendido.


(...)


Nas duas primeiras hipóteses (art. 13, incisos I e II), a responsabilização do comerciante justifica-se em face da dificuldade ou, até mesmo, da impossibilidade de identificação dos nomes dos responsáveis reais (fabricante, produtor ou consumidor) ou do importador. As normas constantes do incisos I e II do art. 13 do CDC têm suscitado interpretações conflitantes. De um lado, interpreta-se restritamente o benefício concedido ao comerciante, permitindo que seja acionado pelo consumidor quando houver simples ausência de identificação. De outro lado, procede-se a uma exegese mais ampla, admitindo-se apenas a ação direta contra o comerciante quando houver impossibilidade de identificação.


Esta segunda linha de interpretação é a mais correta, pois, havendo possibilidade de identificação do responsável real, não é razoável afastar, desde logo, a eximente concedida pelo legislador e admitir a ação direta contra o comerciante. Imagine-se um consumidor que se intoxicou por uma fruta ou verdura adquirida em um grande supermercado, onde, normalmente, não existe a identificação do produtor. Por evidente, antes de ingressar com o processo, deve-se conceder ao comerciante a oportunidade de indicar o responsável real. Na prática, a melhor solução é a notificação prévia, por escrito particular, do comerciante para que indique o responsável real em prazo determinado, sob pena de ajuizamento de demanda indenizatória (Responsabilidade Civil no Código de Consumidor e a Defesa do Consumidor, p. 170-171 e 181-182 , 3ª ed., 2010, Saraiva)

A responsabilidade do fornecedor pressupõe, pois, que o consumidor indique com precisão o fabricante, produtor, construtor ou importador do produto defeituoso que ensejou os danos para os quais busca reparação, admitindo-se, todavia, a inversão do ônus da prova, mediante decisão fundamentada do juiz, nos termos do art. 6º VIII do CDC, a fim de incumbir ao apontado como fornecedor (o réu) comprovar que não fabricou o produto defeituoso, conforme observa o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, na obra mencionada:


«No Brasil, o ônus probatório do consumidor não é tão extenso, inclusive com possibilidade de inversão do ônus da prova em seu favor, conforme será analisado em seguida, Deve ficar claro, porém, que o ônus de comprovar a ocorrência dos danos e da sua relação de causalidade com determinado produto ou serviço é do consumidor. Em relação a esses dois pressupostos da responsabilidade civil do fornecedor (dano e nexo causal), não houve alteração da norma de distribuição do encargo probatório do Art. 333 do CPC.


Por outro lado, compete ao fornecedor a comprovação dos fatos impeditivos do direito do direito do demandante (a culpa exclusiva do consumidor, o fato exclusivo de terceiro, a força maior, o caso fortuito); dos fatos modificativos (v.g. a culpa concorrente); ou dos fatos extintivos (v.g. a prescrição). Além disso, deve também demonstrar o fornecedor os fatos cujo encargo probatório lhe atribuído pela lei ou pelo juiz. A inversão do ônus da prova pode decorrer diretamente da própria lei (ope legis) ou de determinação (ope judicis), estando a primeira hipótese prevista no art. 12, § 3º, e 14, § 3º, enquanto a regra do art. 6º, inciso VIII, do CDC contempla a segunda situação (p. 354-355, grifei).

Ocorre, porém, que, no caso em exame, o autor da ação limitou-se a afirmar que adquiriu uma garrafa de coca-cola litro «no Posto de Gasolina situado na Rodovia Com. João Ribeiro de Barros, município de Iacri-SP, já que empreendia viagem a esta cidade de Tupi Paulista» e que a empresa Refrigerantes Marília Ltda, sucedida pela Spaipa S/A Indústria Brasileira de Bebidas, ora embargante, «é fabricante e comercializa COCA-COLA, nesta região do Estado de São Paulo» (fl. 7). A ré contestou, afirmando que «várias são as empresas que fabricam o produto, com fábricas sediadas em toda a região onde ocorrido o evento. O estabelecimento vendedor poderia ter adquirido o produto, pois, de qualquer um dos fabricantes.» (fl. 106). Não indicou o autor, sequer, o nome do estabelecimento no qual adquiriu o refrigerante, circunstância que impediu a empresa de até mesmo de verificar se mantém ou manteve, na época dos fatos, negócios com o ponto de venda no qual teria sido adquirido o produto.

Observo que a sentença não analisou a inversão do ônus da prova e, a despeito de reconhecer o dano provocado pelo estouro de garrafa de refrigerante, julgou improcedente o pedido porque entendeu não comprovada a fabricação do produto defeituoso pela ora embargante, confira-se (fls. 649-651):


«Enfim, foi comprovado que o autor sofreu um dano gerado pela expulsão involuntária da tampa de garrafa de coca-cola.


Todavia, data venia, não há prova de que a empresa incorporada, Refrigerantes Marília Ltda, tenha sido a fabricante do produto, de forma a gerar a obrigação de indenizar.


Embora a aludida empresa tenha fabricado e comercializado a coca-cola nesta região do estado, fato esse que é incontroverso, nem por isso significa que aquele refrigerante tenha sido produzido por ela.


O próprio autor admitiu na petição inicial que aquela empresa era apenas uma, «como tantas outras fábricas existentes em todo o Brasil do refrigerante coca-cola.


Em outras palavras, é sabido que o autor adquiriu um refrigerante coca-cola no restaurante de um posto de abastecimento, mas não é sabido se tal estabelecimento comercial havia adquirido o produto de fabricação da empresa incorporada Refrigerantes Marília Ltda.


O aludido restaurante poderia muito bem ter adquirido o refrigerante produzido por qualquer outra fábrica da coca-cola.


E nem se diga que o autor da ação estaria impossibilitado de realizar tal prova.


Poderia ter apresentado a tampinha que lhe causou o ferimento e, dessa forma, noticiar a empresa produtora do refrigerante. É do conhecimento geral que as tampinhas dos refrigerantes trazem o nome do fabricante do produto.


Poderia também trazer depoimentos dos proprietários do restaurante para que eles esclarecessem de qual fábrica da coca-cola haviam adquirido o produto.


Enfim, não havendo nenhum adminículo de prova de que a empresa incorporada Refrigerantes Marília Ltda produziu o refrigerante que causou o acidente, impõe-se a improcedência da demanda.

Discute-se, pois, na presente ação, não o defeito da garrafa de coca-cola cuja explosão provocou seríssimos danos na visão do consumidor, fato esse incontroverso, mas se o produto defeituoso foi fornecido ao ponto de venda em que adquirido pela empresa incorporada pela ora embargante, prova que, mesmo nas relações de consumo, caberia ao autor da ação, admitindo-se a inversão do ônus da prova, com base no art. 6º, VIII, do CDC, mediante decisão fundamentada em que sejam examinados os requisitos descritos nele descritos (verossimilhança ou hipossuficiência).

No julgamento da apelação, todavia, o Tribunal de Justiça, ao interpretar o referido dispositivo legal, considerou que a inversão do ônus da prova em favor do consumidor deve ser automática, exigindo-se manifestação judicial fundamentada apenas quando o magistrado entender não aplicável a inversão, conforme se extrai das seguintes passagens do voto condutor (fl. 715):


«Não se pode deixar de lembrar, como bem ressaltado pelo autor nas razões de apelação, que estamos diante de uma relação de consumo, regida pelo Código de Defesa do Consumidor, que, pelo seu artigo 6º, inciso VIII, impõe ao juiz a inversão do ônus da prova em favor do hipossuficiente. A bem interpretar tal dispositivo, há de se compreender, porque presunção juris tantum, a hipossuficiência (deixando-se a verosimilhança da alegação quando se tratar de pessoas jurídicas, ou mesmo pessoas físicas, mas sempre em igualdade de condições com o fornecedor), invertendo-se, sempre, o ônus da prova, independentemente de expressa manifestação do juiz nesse sentido. Ou seja, apenas quando o juiz, nos casos de hipossuficiência, entender que não se inverter o ônus da prova, é que expressará o seu critério. Caso contrário, o alcance do artigo deixa de cumprir suas finalidades, considerando aqui tratar-se o Código de Defesa do Consumidor de norma de proteção ao consumidor hipossuficiente contra o fornecedor. E o critério para não se inverter o ônus da prova, há de ser fundamentado pelo juiz, levando-se em conta entre os seus direitos básicos a facilitação da defesa de seus direitos.

O Tribunal de origem, portanto, em manifestação dissonante da orientação deste Tribunal, considerou a inversão do ônus da prova de que trata o art. 6º VIII do CDC como regra de julgamento, atribuindo à ora recorrente o dever de demonstrar, independentemente de inversão judicial, que «não é a fabricante do refrigerante Coca-Cola distribuído naquela região, ou mesmo demonstrar que efetuou vendas ao estabelecimento apontado pelo autor como aquele em que adquiriu o refrigerante» (fls. 715-716). Não produzida a prova, sem considerar sequer que não fora declinado na inicial nem o nome (ou endereço completo) do estabelecimento comercial onde adquirido o produto, presumiu que a empresa incorporada pela ora embargante fabricou o produto defeituoso, condenando-a ao pagamento da indenização pleiteada na inicial.

Ao apreciar o recurso especial, o acórdão embargado adotou o entendimento de que «a inversão do ônus da prova, prevista no inc. VIII, do CDC, é regra de julgamento» (fl. 904). A 4ª Turma, em direção diametralmente oposta, entende que o referido dispositivo legal regula regra de instrução, conforme demonstram os acórdãos paradigmas: REsp. 881.651/BA, REsp. 662.608/SP e REsp. 591.110/BA (fls. 936, 946 e 955). Manifesta, portanto, data maxima vênia, a divergência a justificar o conhecimento dos presentes embargos de divergência.

O presente recurso não tem, pois, por objeto verificar a existência do defeito no produto, o que demandaria reexame do conjunto fático-probatório dos autos, procedimento vedado pela Súmula 7/STJ. Cuida-se de decidir se é possível inverter, no julgamento da apelação (como regra de julgamento, portanto, e não de instrução), o ônus da prova acerca do próprio nexo causal, no caso, a correta identificação do fabricante do produto defeituoso, sendo manifesta, pois, no ponto, a divergência de entendimento entre as turmas que integram esta 2ª Seção. Não tem relevância a circunstância de os acórdãos paradigmas terem examinado, respectivamente, indenização por dano moral decorrente de agressão por segurança de estabelecimento comercial e revisão de cláusulas de contrato bancário, dado que em todos os casos a conclusão decorreu da interpretação do art. 6º, VIII, do CDC.

A propósito, apenas a título de exemplo, cito o seguinte acórdão da 2ª Seção:


EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DESNECESSIDADE DE ACÓRDÃOS ABSOLUTAMENTE IDÊNTICOS, BASTANDO A SIMILITUDE ENTRE OS JULGADOS PARA A CONFIGURAÇÃO DA DIVERGÊNCIA. LITISCONSÓRCIO. INEXISTÊNCIA DE SUCUMBÊNCIA DE DOIS DOS TRÊS LITISCONSORTES. AUSÊNCIA DE INTERESSE PARA RECORRER, NO QUE LHES TOCA. INAPLICABILIDADE DO ART. 191 DO CPC. PRECEDENTE. APELAÇÃO DA EMBARGANTE QUE SE DIZ MANTER O LITISCONSÓRCIO ENTRE EMBARGADA E HOSPITAL. INAPLICABILIDADE. EMBARGOS ACOLHIDOS, NEGANDO-SE PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL.


1. A existência de diferenças pontuais entre os acórdãos não impede a admissibilidade dos embargos de divergência, se a questão nuclear foi abordada pelos julgados confrontados, exibindo clara a divergência no tocante à aplicação ou não do disposto no art. 191 do CPC, em situações parelhas, como indicadas.


2. Inexistindo sucumbência e interesse de recorrer, porém, por parte dos litisconsortes, que restaram vitoriosos em primeira instância, não se aplica a dobra do prazo. Precedente: EResp 222.405/SP, Corte Especial.


3. A apelação da embargante manteve o litisconsórcio tão-somente no que toca àquele recurso, mas não em relação ao apelo da embargada, onde a participação do litisconsorte seria inócua.


4. Embargos de divergência acolhidos, negando-se provimento ao recurso especial.


(ERESP 525.796/RS, 2ª Seção, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 19.3.2007)

Diante disso, como bem delineado pelo Relator, Min. João Otávio de Noronha, «a matéria a ser apreciada por esta Segunda Seção, nos presentes autos, diz respeito ao momento em que se deve promover a inversão do ônus da prova»

Esse tema, todavia, já está pacificado no âmbito desta 2ª Seção que, no recente julgamento do REsp. 802.832/MG, consolidou a orientação de que a inversão do ônus da prova de que trata o art. 6º, inc. VIII do CDC é regra de instrução, devendo a decisão judicial que a determinar ser proferida «preferencialmente na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurando-se à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo, a reabertura de oportunidade».

Em face do exposto, conheço e dou provimento aos embargos de divergência para anular o processo desde a sentença e determinar ao juiz de primeiro grau que, caso considere presentes os requisitos da inversão do ônus da prova estabelecidos no art. 6º, inc. VIII, do CDC, reabra a instrução do processo, a fim de propiciar à embargante a oportunidade de comprovar não ser a fabricante da garrafa de coca-cola adquirida pelo autor da ação. ...» (Minª. Maria Isabel Gallotti).»

Doc. LegJur (124.3555.3000.3600) - Íntegra: Click aqui


Referência(s):
Consumidor (Jurisprudência)
Embargos de divergência (v. Consumidor ) (Jurisprudência)
Inversão do ônus da prova (v. Prova ) (Jurisprudência)
Ônus da prova (v. Consumidor ) (Jurisprudência)
CDC, art. 6º, VIII
CDC, art. 12
CDC, art. 13
CDC, art. 18
CPC, art. 333
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