Jurisprudência em Destaque
STJ. 1ª Seção. Desapropriação. Administrativo. Terras de fronteira. Debate acerca da propriedade pública dos imóveis. Possibilidade. Condição da ação: possibilidade jurídica do pedido. Considerações do Min. Hermann Benjamin sobre o tema. Dec.-lei 3.365/1941, arts. 20 e 34. Inaplicabilidade. Súmula 477/STF. CPC, art. 267, VI.
A situação de fundo gira em torno das centenas de desapropriações promovidas pelo INCRA na região de fronteira do Estado do Paraná.
A Segunda Turma vem interpretando estritamente o art. 20 do Dec.-lei 3.365/1941, excluindo, portanto, a possibilidade de discussão quanto ao domínio do imóvel expropriado, mesmo nessa hipótese excepcional, em que o INCRA alega que o bem é da própria União.
Ao relatar o REsp 751.141/PR (j. 19.6.2007), já havia me posicionado no sentido de que o debate refere-se a uma das condições da ação, conforme o entendimento adotado pela Primeira Turma, o que permitiria sua análise na própria Ação de Desapropriação. No entanto, aquele Recurso foi provido com base no art. 535 do CPC, apenas para que o Tribunal de origem se manifestasse a respeito dessa importante questão, essencial para o deslinde da demanda.
Nos casos em que a Segunda Turma efetivamente debruçou-se sobre a questão de fundo, passei a acompanhar o entendimento do colegiado, fazendo a ressalva quanto à minha interpretação da legislação federal (v.g. REsp 1.019.321/PR, j. 13.6.2008).
Há, no entanto, notório dissídio entre o posicionamento das duas Turmas: uma reconhece a possibilidade excepcional do debate sobre a dominialidade, desde que trazida aos autos pela Autoridade expropriante; a outra, em sentido oposto, o nega. É essa interpretação divergente que a Primeira Seção deve solucionar. Saliento que os Embargos de Divergência referem-se exclusivamente a tal questão jurídica.
Para maior clareza, discorrerei, inicialmente, sobre o histórico dessas desapropriações. A seguir, analisarei o disposto nos arts. 20 e 34 do Dec.-lei 3.365/1941 e a hipótese trazida a julgamento.
1. Breve histórico
Nas inúmeras demandas relacionadas ao tema, ficou consignado que o Estado do Paraná titularizou, na década de 1950, as terras de fronteira ora em litígio em favor de diversos particulares.
Ocorre que os agraciados pelo suposto domínio dessas terras não correspondiam, no mais das vezes, àqueles que já a ocupavam.
Deflagrou-se, então, grande conflito pela posse e pelo domínio das áreas.
A União, com o intuito de pacificar a situação, resolveu desapropriar os imóveis na década de 1970 e retitulá-los em favor de determinados possuidores. Para tanto, foram publicados decretos de interesse social (Decretos 75.280/1975 e 81.782/1978), abarcando dezenas de milhares de hectares a serem expropriados.
Há relatos do INCRA informando que a União estudou a viabilidade jurídica de diversas opções para a solução do conflito agrário. Dada a urgência e relevância social da situação, optou pela desapropriação, que lhe pareceu, naquele momento histórico, o meio adequado.
Ocorre que o egrégio STF, ao analisar a questão do domínio dessas áreas, em demandas específicas, entendeu tratar-se de imóveis da União (terras de fronteira). Nessa condição, o Estado não poderia transferir o domínio a quem quer que fosse:
Faixa de Fronteira - 1) Terras devolutas nelas situadas. São bens dominicais da União (Const. Fed., artigo 34, II; Lei 2.597, de 12.9.55, artigo 2º). 2) - As concessões de terras devolutas situadas na faixa de fronteira, feitas pelos Estados anteriormente à vigente Constituição, devem ser interpretadas como legitimidade e uso, mas não a transferência do domínio de tais terras, em virtude da manifesta tolerância da União, e de expresso reconhecimento da legislação federal. 3) - O Estado concedente de tais terras é parte legítima para rescindir os contratos de concessão de terras devolutas por ele celebrados, bem como para promover o cancelamento de sua transcrição no Registro de Imóveis.
RE-embargos 52331 / PR, Relator(a): Min. EVANDRO LINS, Tribunal Pleno, j. 30/03/1964.
Eis a súmula correspondente:
Súmula 477/STF: As concessões de terras devolutas situadas na faixa de fronteira, feitas pelos Estados, autorizam, apenas, o uso, permanecendo o domínio com a União, ainda que se mantenha inerte ou tolerante, em relação aos possuidores.
O INCRA passou a defender a impossibilidade de prosseguimento das desapropriações, por falta de condição da ação (interesse, legitimidade e, especialmente, possibilidade jurídica).
A seguir, analisarei os dispositivos legais aplicáveis.
2. Arts. 20 e 34 do Dec.-lei 3.365/1941
É indiscutível que o art. 20 impede, em regra, o debate acerca de domínio nas Ações de Desapropriação:
Art. 20. A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta.
De modo coerente, veda-se o levantamento da indenização no caso de dúvida quanto ao domínio (o que pressupõe o depósito pelo expropriante):
Art. 34. O levantamento do preço será deferido mediante prova de propriedade, de quitação de dívidas fiscais que recaiam sobre o bem expropriado, e publicação de editais, com o prazo de 10 dias, para conhecimento de terceiros.
Parágrafo único. Se o juiz verificar que há dúvida fundada sobre o domínio, o preço ficará em depósito, ressalvada aos interessados a ação própria para disputá-lo.
Ao interpretar esses dispositivos, a Segunda Turma tem entendido que seria inviável o debate relativo ao domínio das terras de fronteiras, que deve ser remetido às vias próprias (ação direta – art. 20 do Dec.-lei 3.365/1941).
Ocorre que esses dispositivos legais, acima transcritos, referem-se à discussão dominial entre particulares e não são aplicáveis quando a controvérsia recai sobre a possibilidade de desapropriação em si, no caso de o imóvel pertencer ao expropriante. Assim como ninguém pode comprar de outrem o que é seu, tampouco pode a Administração indenizar terceiros por aquilo que integra o domínio público.
Esclareço: se há dúvida quanto ao proprietário privado do imóvel desapropriado, se Tício ou Caio, isso é irrelevante para o andamento da desapropriatória, pois, de qualquer forma, a indenização haverá de ser depositada pelo Poder Público, já que a terra não lhe pertence.
Essa discussão quanto ao proprietário privado somente interessa na definição de quem levantará o depósito, e não para fixar o dever de depositar ou apurar o quantum do depósito.
É por essa razão que o art. 20 do Dec.-lei 3.365/1941 refere-se à contestação da desapropriação, que é apresentada, evidentemente, pelo expropriado ("A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta.")
Não há dúvida, por conseguinte, de que o particular não pode suscitar, em sua resposta processual, o debate a respeito do domínio, pois tal matéria em nada alteraria o contexto jurídico do caso: quem quer que venha a ser considerado o dono verdadeiro, a terra continuará privada e, se o Estado dela precisa, necessário indenizar seus reais proprietários. Nada mais razoável então que debate desta natureza seja feito em outra ação, considerando-se que o procedimento da desapropriatória prestigia o interesse social na imediata imissão na posse e na célere transferência do domínio para o Poder Público. Do contrário, as desapropriações, especialmente a reforma agrária, demorariam dezenas de anos para surtir o efeito prático, tido por urgente pelo Poder Público, isto é, o assentamento dos sem-terra e a conseqüente pacificação social.
Note-se, portanto, que o art. 20 do Dec.-lei 3.365/1941 é dispositivo inscrito em favor do Poder Público. É paradoxal interpretá-lo de modo a impelir a União a pagar por um imóvel que lhe pertence ou a continuar com uma ação desapropriatória a qual falte o pressuposto jurídico mais importante, vale dizer, a dominialidade alheia do bem!
No caso dos autos, a dúvida refere-se ao domínio da União sobre as terras a serem desapropriadas. É evidente que o imóvel da União não pode ser objeto de Ação de Desapropriação, muito menos quando intentada por ela mesma. O debate sobre a propriedade, nessa hipótese excepcional, prejudica a existência da ação expropriatória.
Trata-se, como visto, de óbice ao próprio desenvolvimento válido do processo, cujo enfrentamento não pode ser evitado ou adiado pelo Judiciário sob pena de condenar absurdamente a União a pagar por imóvel que lhe pertence e foi, a seguir, retitulado em favor dos particulares!
O eminente Ministro Luiz Fux, em diversos processos na Primeira Turma, tem esclarecido com maestria o cerne da questão (REsp 542.056/PR, por ele relatado):
Consectariamente, inocorre julgamento extra-petita na análise do domínio, no bojo da presente ação, porquanto há, em verdade, impossibilidade jurídica de o titular expropriar bem próprio, o que encerra figura assemelhada à confusão.
A ratio essendi do art. 34, do Decreto-Lei 3.365/41, pressupõe disputa de preço e não controvérsia ab origine sobre se o expropriante titular do domínio pode expropriar res própria, o que encerra figura assemelhada à confusão.
Deveras, não cabe ao ente público expropriar e indenizar aquilo que lhe pertente, ou, ainda, ao Incra indenizar área pertencente à União.
3. Conclusão
Como visto, os arts. 20 e 34 do Dec.-lei 3.365/1941 referem-se à dúvida dominial entre os particulares. Esse debate, em regra, é irrelevante para o prosseguimento da Ação de Desapropriação, que prestigia o interesse social na imediata imissão na posse e célere transferência do domínio para o Poder Público. O levantamento da indenização pelo particular fica na dependência da solução da controvérsia quanto à propriedade do imóvel.
Os autos tratam de hipótese excepcional e diversa daquela prevista no Decreto-Lei 3.365/1941, o que leva ao afastamento da aplicação da regra em questão.
Os dispositivos citados (arts. 20 e 34 do Dec.-lei 3.365/1941) não podem impedir a discussão quanto à possibilidade jurídica do pedido, já que é inviável uma Ação de Desapropriação de imóveis da União situados na faixa de fronteira. Essa matéria não está sendo trazida pela parte expropriada - via contestação, como referida no art. 20 -, mas pela Autoridade desapropriante.
É verdade que a interpretação dada pela Segunda Turma, contrária ao debate acerca do domínio público da terra expropriada, não significa que o valor da indenização será levantado pelo particular. O juiz pode, e deve, reter os montantes até que a discussão seja solucionada na via própria, nos termos do art. 34, parágrafo único, do Dec.-lei 3.365/1941.
Mesmo assim, há enorme e injustificável ônus para o Erário e para a máquina judiciária.
Em primeiro lugar, dá-se prosseguimento a centenas de processos, sem que haja condição para o seu desenvolvimento válido (impossibilidade jurídica do pedido), com custo incalculável para o Judiciário e, em última análise, para o interesse público.
Em segundo lugar, impõe-se à União enorme encargo econômico e orçamentário, relativo a vultosos depósitos judiciais que não poderão, a toda evidência, ser levantados.
Reitero que não se analisa, nos presentes Embargos de Divergência, a efetiva titulação dessas terras, muito embora a questão seja objeto de diversos precedentes do egrégio STF, nos termos da Súmula 477/STF.
No entanto, o STJ não pode deixar de garantir ao Poder Público a possibilidade de debater essa matéria na própria Ação de Desapropriação, sob pena de ratificar uma situação juridicamente insustentável.
Diante do exposto, nego provimento aos Embargos de Divergência e mantenho o acórdão que reconheceu a possibilidade de discussão acerca do domínio público das terras. ...» (Min. Hermann Benjamin).»
Doc. LegJur (134.3833.2000.3600) - Íntegra: Click aqui
Referência(s):
▪ Desapropriação (Jurisprudência)
▪ Administrativo (Jurisprudência)
▪ Terras de fronteira (v. ▪ Desapropriação) (Jurisprudência)
▪ Debate acerca da propriedade pública dos imóveis (v. ▪ Terras de fronteira) (Jurisprudência)
▪ Propriedade (v. ▪ Terras da fronteira) (Jurisprudência)
▪ Condição da ação (Jurisprudência)
▪ Possibilidade jurídica do pedido (Jurisprudência)
Dec.-lei 3.365/1941, art. 20 (Legislação)
Dec.-lei 3.365/1941, art. 34 (Legislação)
▪ Súmula 477/STF (Terras devolutas. Faixa de fronteira. Concessão. Direitos).
▪ CPC, art. 267, VI
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