Jurisprudência em Destaque
STJ. 3ª T. Família. Filiação. Paternidade. Filiação socioafetiva. Declaratória de inexistência de filiação. Pedido deduzido pelo irmão para alterar o registro de nascimento da irmã. Condições da ação. Interesse de agir. Inexistência. Extinção do processo. Considerações da Minª. Nancy Andrighi sobre o tema. Precedentes do STJ. CPC, art. 269, I. Lei 6.015/1973, art. 30, § 3º. CCB, arts. 145, 146, 147 e 348. CCB/2002, arts. 1.601, 1.604 e 1.606. CF/88, art. 227, § 6º.
Superado o debate inicial, quanto à legitimidade do recorrente, o Tribunal de origem apontou a carência de ação, desta feita à luz da falta de interesse de agir, o que inviabilizaria o pleito deduzido inicialmente de declaração negativa de paternidade.
Nessa senda, deve se evidenciar que a falta de interesse de agir que determina a carência de ação, é extraída, tão só, das afirmações daquele que ajuíza a demanda – in status assertionis –, em exercício de abstração que não engloba as provas produzidas no processo, porquanto a incursão em seara probatória determinará a resolução de mérito, nos precisos termos do art. 269, I, do CPC.
Na espécie, cindem-se os elementos que informam o interesse de agir, aos que poderão dar suporte à decisão de mérito, pois apenas da apreciação do direito material em litígio exsurgirá uma possível interferência da atitude de A.V., genitor do recorrente e pai registral da recorrida, na esfera jurídica do recorrente, circunstância que determina a apreciação da matriz da controvérsia.
Perquirindo sobre os comandos legais nos quais se embasam este recurso especial, vê-se que eles restringem, de maneira evidente: ao marido, a legitimidade para contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher (art. 1.601 do CC-02), e ao filho, a legitimidade para ajuizamento de ação de prova de filiação (art. 1.606 do CC-02).
No entanto, da dicção – contrario sensu – do art. 348 do CC-16 – 1.604 do CC-02 –, há notória ampliação desse leque, outorgando-se legitimidade e reconhecendo-se o interesse, àqueles, que demonstrando interesse, provem a existência de erro ou falsidade no registro.
Nessa linha de pensamento, a priori, pode se vislumbrar o interesse do recorrente para contestar a veracidade do registro de nascimento, porquanto se tem como fato inconteste, nesse processo, a inexistência de vínculo biológico entre A.V. – genitor do recorrente – e a recorrida.
Contudo, a questão não se encerra nessa singela constatação, pois se de um lado inexiste vínculo biológico entre o pai registral e a recorrida, a pleiteada alteração no registro civil deve ser avaliada à luz da existência de uma relação de filiação socioafetiva consolidada e construída sobre ações de boa-fé do pai socioafetivo.
A ideia que subjaz a essa afirmativa, vai para além do limitado texto legal que regula o parentesco, dando destaque e, não raras vezes, supremacia ao acolhimento afetivo, e torna efetivo o que Rolf Madaleno chama de «posse do estado de filho». (Madaleno, Rolf, in: Curso de Direito de Família, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 471).
Nesse diapasão, embora não se discuta a ausência de vínculo biológico, a posse do estado de filha ocorreu, mesmo que por lapso temporal restrito, tanto assim que ensejou o registro da recorrida, por A.V., como se sua filha fosse.
Mesmo na ausência de ascendência genética, este fato – registro da recorrida como filha -, realizado de forma consciente, consolidou a filiação socioafetiva, relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, deve ter guarida no Direito de Família.
Na hipótese, a posse do estado de filho por parte do pai socioafetivo, ocorreu a partir da chamada «adoção à brasileira», sistema que embora à margem da Lei, consolida, para os adotados, a condição de filho, que não pode ser enjeitada por aquele que registrou, nem ao menos contestada por terceiros.
O bem estar da criança e do adolescente, regra programática que impacta toda a interpretação dos componentes legais a ela relacionados, acomoda as filiações socioafetivas para considerá-las válidas, desde que voltadas para o desiderato primeiro.
E note-se, essa relação socioafetiva não é constatada somente por meio de um convívio perene, como quer fazer crer o recorrente, mas no momento da declaração do pai registral, porque de outra forma, se construiria relação filial sujeita às intempéries da vida, que podem determinar o afastamento de pessoas que mantinham íntima convivência, como de fato ocorreu na espécie.
A alegada ausência de convívio entre a recorrida e seu pai registral, é lamentável, mas não dá ensejo à reavaliação do inequívoco fato de que ele, quando coabitava com a mãe da recorrida, assumiu, em ação volitiva, não coagida, a paternidade sociafetiva.
Mais do que isso, como também nas relações familiares o meta princípio da boa-fé objetiva deve ser observado, a coerência comportamental é padrão para se aferir a correção de atos comissivos e omissivos praticados dentro do contexto familiar.
A boa-fé objetiva, aqui, é vista sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), perfeitamente aplicável às relações familiares, como afirmam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald. (Farias, Cristiano Chaves e Rosenvald, Nelson. Direito das Familias. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.pp. 99-100).
Sob essa ótica, o comportamento de A.V. – pai biológico do recorrente, e registral da recorrida –, conspira contra a pretensão do recorrente de alterar o registro civil da recorrida, pois, nos dizeres deste, o pai «penalizado pela situação (da recorrida), participando da vida daquela família e com sentimento de carinho que nutria tanto pela mãe, quanto pela requerida, registrara a menina com seu nome, momento em que passara ela a figurar como sua filha (fl. 08, e-STJ).
E aqui se encontra o obstáculo intransponível à pretensão do autor:
S M V B DA C. se apropriou da condição de filha de A.V., situação consolidada pelo próprio, e é esse status que em nome da primazia dos interesses do menor não lhe pode ser agora negado, apenas para dar guarida ao reconhecimento da inexistência de vínculo genético com aquele que, na prática, foi seu pai.
A prevalência da filiação socioafetiva em detrimento da verdade biológica, in casu, tão somente dá vigência à cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano.
A paternidade socioafetiva, incorporada à personalidade da recorrida, não pode ficar à deriva, em face das incertezas, instabilidades ou interesses de terceiros, mesmo que vindicados sobre a real constatação de falsidade, que frise-se, não foi realizada pela recorrida, mas por seu pai socioafetivo.
Nesse mesmo sentido, a 4ª Turma do STJ já se posicionou – ainda que em hipótese não em todo semelhante a esta –, por ocasião do julgamento do REsp Acórdão/STJ, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ 23/6/2003, que foi assim ementado:
«FILIAÇÃO. ANULAÇÃO OU REFORMA DE REGISTRO. FILHOS HAVIDOS ANTES DO CASAMENTO, REGISTRADOS PELO PAI COMO SE FOSSE DE SUA MULHER.
SITUAÇÃO DE FATO CONSOLIDADA HÁ MAIS DE QUARENTA ANOS, COM O ASSENTIMENTO TÁCITO DO CÔNJUGE FALECIDO, QUE SEMPRE OS TRATOU COMO FILHOS, E DOS IRMÃOS. FUNDAMENTO DE FATO CONSTANTE DO ACÓRDÃO, SUFICIENTE, POR SI SÓ, A JUSTIFICAR A MANUTENÇÃO DO JULGADO.
- Acórdão que, a par de reputar existente no caso uma «adoção simulada», reporta-se à situação de fato ocorrente na família e na sociedade, consolidada há mais de quarenta anos. Status de filhos.
Fundamento de fato, por si só suficiente, a justificar a manutenção do julgado.
Recurso especial não conhecido.».
Na espécie, a filiação socioafetiva – que se traduz, na sua forma plena, pela paternidade afetiva, e encontra alicerce no art. 227, § 6º, da CF/88, foi incorporada pelos seus principais atores – pai socioafetivo e filha socioafetiva –, e suplantou, em relevância, a teórica força da paternidade biológica, criando realidade indissociável para esses personagens.
A.V., desde antes do formal registro no assentamento da recorrida, sempre foi pai da recorrida, mesmo tendo ela consciência da inexistência do vínculo biológico, fato que não pode ser alterado, décadas depois, mesmo que esse reconhecimento trisque, de alguma forma, a esfera jurídica do recorrente.
O exercício de direito potestativo por A.V. – estabelecimento de filiação socioafetiva em relação à recorrida –, pela sua própria natureza, não pode ser questionado por seu filho biológico, mesmo na hipótese de indevida declaração no assento de nascimento da recorrida.
Assim, não merece reforma o acórdão recorrido, porquanto, apesar de ser possível ultrapassar o debate relativo à carência de ação, a apreciação do mérito não reverte o posicionamento judicial anteriormente exarado. ...» (Minª. Nancy Andrighi).»
Doc. LegJur (133.3032.5000.9400) - Íntegra: Click aqui
Referência(s):
▪ Família (Jurisprudência)
▪ Filiação (Jurisprudência)
▪ Paternidade (v. ▪ Filiação) (Jurisprudência)
▪ Filiação socioafetiva (v. ▪ Paternidade) (Jurisprudência)
▪ Declaratória de inexistência de filiação (v. ▪ Filiação socioafetiva) (Jurisprudência)
▪ Irmão (v. ▪ Paternidade) (Jurisprudência)
▪ Irmã (v. ▪ Paternidade) (Jurisprudência)
▪ Condições da ação (v. ▪ Interesse de agir) (Jurisprudência)
▪ Interesse de agir (v. ▪ Paternidade) (Jurisprudência)
▪ Extinção do processo (v. ▪ Paternidade) (Jurisprudência)
▪ CPC, art. 269, I
alf_leg("Lei","6015","","1973","30","","§ 3","","pdf001004460"); ?> (Legislação)
▪ CCB, art. 145
▪ CCB, art. 146
▪ CCB, art. 147
▪ CCB, art. 348
▪ CCB/2002, art. 1.601
▪ CCB/2002, art. 1.604
▪ CCB/2002, art. 1.606
▪ CF/88, art. 227, § 6º
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